26 agosto 2015

Queria ter feito mais', diz mãe, 1 ano após Jandira morrer em aborto no Rio

26/08/2015 06h37 - Atualizado em 26/08/2015 06h37

'Queria ter feito mais', diz mãe, 1 ano após Jandira morrer em aborto no Rio

Família critica atitude de fazer o aborto e cobra punição de responsáveis.
RJ realizou 72 mil abortos induzidos, legais ou não, em 2014, diz entidade.

Henrique CoelhoDo G1 Rio
No dia 26 de agosto de 2014, Jandira Magdalena dos Santos saiu de casa para fazer um aborto clandestino numa clínica em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio, e não voltou mais. Uma semana depois, o corpo da auxiliar administrativa de 27 anos foi encontrado em Guaratiba, também na Zona Oeste, alvejado por um tiro, esquartejado e carbonizado por uma quadrilha especializada em abortos ilegais. O cadáver ainda estava sem a arcada dentária. Um ano depois, a mãe de Jandira, Maria Ângela dos Santos, de 56 anos, concedeu uma entrevista ao G1. Ela critica a decisão tomada pela filha, mas também sente culpa.
Mãe de Jandira mostra armário onde guardou pertences da filha (Foto: Henrique Coelho/G1)Mãe de Jandira mostra armário onde guardou
pertences da filha (Foto: Henrique Coelho/G1)
"Eu queria ter feito mais para impedir". Segundo a dona de casa, ela ainda tentou convencer Jandira a não fazer o procedimento, mas não conseguiu", diz, emocionada, enquanto revira os pertences da filha no armário do quarto onde a jovem dormia (veja vídeo acima).
A auxiliar administrativa deixou duas filhas, uma de 10 e outra de 12 anos. A família, evangélica, é radicalmente contra o aborto.
"Não considero uma saída. Disse a ela que cuidaria da criança, mas ela não ouviu. Ela também foi uma criminosa, mas pagou do pior jeito possível, que é a vida", avalia Joyce Magdalena, irmã de Jandira.
Já a mãe diz que a filha não morreu em vão. "Muitas deixaram de morrer depois de verem o que aconteceu com ela. Ela lidou com bandidos, que não podem estar fora da cadeia", afirmou a mãe.
Os motivos
Jandira estava no terceiro mês de gestação e decidiu abortar depois que seu parceiro na época a abandonou. "Eu disse que até cuidaria da criança se ela quisesse, mas ela estava irredutível", lembra a irmã, Joyce. Jandira pagou R$ 4,5 mil pelo procedimento.
De acordo com a legislação atual, o aborto é permitido em casos de risco à saúde da gestante ou quando a gravidez é resultante de um estupro. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) também autorizou, por 8 votos a 2, o aborto em caso de fetos anencéfalos.
Oito presos
Após o fim das investigações da 35ª DP (Campo Grandex) oito pessoas continuam presas. O caso, que está na 4ª Vara Criminal do Rio, irá a Júri Popular, ainda sem data definida, de acordo com o Tribunal de Justiça.
A violência foi tanta, que o corpo carbonizado encontrado em Guaratiba só foi identificado como sendo de Jandira no dia 23 de setembro, após o resultado de um exame de DNA.
O delegado que conduziu as investigações, Hilton Alonso, afirma que a própria perícia da Divisão de Homicídios (DH) teve dificuldades devido à carbonização. "Eles conseguiram identificar o corpo, mas era impossível saber como ela havia morrido, se com o tiro, se durante o procedimento. Não tinha como", explicou ele.
Maria Angela dos Santos, Mãe de Jandira (Foto: Henrique Coelho/G1)Maria Angela dos Santos, Mãe de Jandira (Foto: Henrique Coelho/G1)
Operação contra quadrilha
Na esteira do crime contra Jandira, a Corregedoria da Polícia Civil realizou, em outubro de 2014, a Operação Herodes, para cumprir 75 mandados de prisão contra uma quadrilha que atuava em sete núcleos diferentes na cidade. A investigação durou 15 meses e começou antes do crime contra Jandira.
"Mostrar o que cada um dos 75 réus fez foi o mais difícil de todo o processo, além de mostrar a conexão entre eles", afirmou o promotor Marcelo Muniz, responsável pelo caso.

Entre os dez que ainda são considerados foragidos, de acordo com a Polícia Civil do Rio, está o ginecologista e obstetra Evangelista Pinto da Silva Pereira, de 77 anos.

De acordo com a denúncia do Ministério Público, o médico era considerado o chefe de uma famosa clínica de abordo clandestino que funcionava na Rua Dona Mariana, em Botafogo, na Zona Sul do Rio. O telefone de seu consultório, em São Conrado, encontra-se desligado. Ele responde na Justiça a um processo por aborto desde 1998, tem seis anotações criminais e estaria desde outubro de 2014 nos EUA, segundo depoimento de testemunhas à polícia.
Médico matéria aborto (Foto: Polícia Civil/Divulgação)Médico está foragido após operação em 2014
(Foto: Polícia Civil/Divulgação)
O advogado de Evangelista, Sérgio Riera, foi procurado pelo G1, mas não respondeu até a publicação desta reportagem. Em outubro, a polícia chegou a pedir à Interpol que procurasse por Evangelista e o prendesse.

A quadrilha, de acordo com a investigação da corregedoria da polícia civil, lucrava até R$ 300 mil mensais em cada núcleo. Participavam do grupo: 14 servidores públicos, incluindo 8 policiais civis, 4 policiais militares, um bombeiro militar e um militar do Exército.

André do Espírito Santo, advogado da técnica de enfermagem Rosemere Ferreira, chefe da quadrilha que matou Jandira, também foi preso durante as investigações.
G1 conversou com uma mulher que realizou um aborto na clínica, em 2006, e conta sobre o que viu e passou no local. Pressionada pelo então parceiro, a mulher, que não quis se identificar, fez o procedimento pelo qual pagou R$ 1,8 mil. "Eu sobrevivi, mas fiquei muito traumatizada. Pela incerteza, insegurança, o medo, a solidão, tudo isso. A mulher precisa estar no centro dessa discussão", diz ela, emocionada.
Números do risco
O risco que Jandira enfrentou está muito longe de ser um caso pontual. De acordo com estimativas do médico Mario Gianni Monteiro, membro do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA), mais de 72 mil abortos induzidos foram realizados no ano de 2014 no estado do Rio, entre legais e ilegais, nas redes pública e particular, e também em clínicas clandestinas.
Para chegar a este resultado, são utilizados dados de atendimentos no SUS após complicações devido a abortos realizados legalmente ou não. A partir daí é feito um cálculo criado pelo Instituto Alan Guttmacher, uma instituição que estuda saúde reprodutiva há mais de 50 anos nos Estados Unidos. A metodologia foi criada durante uma pesquisa, realizada na década de 90, sobre os motivos pelos quais as mulheres realizavam abortos na América Latina.

Entre casos de aborto ilegal no Rio com consequências trágicas, estão os de Elizangela Barbosa, em Niterói, em agosto de 2014, e Tatiana Camilato, no Jacarezinho, na Zona Norte do Rio. Elizangela morreu em Niterói após complicações do aborto em uma clínica clandestina, com o intestino e o útero perfurados. A polícia investiga se Tatiana foi agredida durante o procedimento. Levada para uma UPA próxima ao Jacarezinho, ela não resistiu e acabou morrendo em julho de 2015.
Sindicâncias no Cremerj
Em 2013, o Conselho Federal de Medicina enviou um parecer ao Senado Federal para a liberação do aborto até a 12ª semana. A movimentação, no entanto, não avançou na casa. Vera Fonseca, conselheira do Conselho Regional de Medicina do Rio (Cremerj), afirma que a legislação atual, na qual o aborto é considerado um crime, deve ser respeitada.
"Antes de pensar na legalização do aborto, deveríamos pensar em prevenção, através de campanhas e orientação aos pacientes. Além da educação, claro", avalia ela, acrescentando ainda que o Cremerj "não compactua" com médicos que trabalham em clínicas ilegais. Em 2014, segundo o Cremerj, 13 sindicâncias foram abertas contra médicos que atuavam em clínicas ilegais de aborto. Dez delas foram contra os médicos presos na Operação Herodes. Os processos ético-administrativos correm em sigilo.
Família diz que Tatiana morreu na UPA do Engenho Novo (Foto: Henrique Coelho/G1)Mais de 17 mil atendimentos após abortos no SUS
(Foto: Henrique Coelho/G1)
Yury Puello Orozco, uma das fundadoras do Grupo Católicas pelo Direito de Decidir, diz que a mulher tem "capacidade ética e moral " para decidir sobre o próprio corpo. "Não é como se as mulheres fossem irresponsáveis. As mulheres passam por cima de família, cultura, e tem de carregar essa culpa, além de exporem suas próprias vidas", lamenta ela.

O presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/RJ, Bernardo Campinho, afirma que a demora na legalização só deixa mulheres reféns de um "mercado negro do aborto" em todo o Brasil. "Achar que criminalizar o aborto protege o feto é uma ilusão. Precisamos de políticas públicas inclusivas, até para acabar com o estigma e a humilhação", reflete.
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