os despedaçados
Vítima de abuso diz que pai é pior do que um monstro: "Monstros só assustam. Ele machuca"
Por dia, em média, quatro crianças ou adolescentes são encaminhadas ao Hospital Materno Infantil Presidente Vargas por suspeita de violência sexual. Na Capital, a média é de dois casos diários
Surianny dos Santos Silveira, cinco anos, em suas brincadeiras, sonhava ser princesa. Mas a infância e os sonhos foram interrompidos na quarta-feira passada em sua casa, no Bairro Lomba do Pinheiro, na Capital. Surianny foi estuprada e morta. O padrasto da menina e o irmão de criação dele são suspeitos e estão presos.
Em Gravataí, um pai fugiu com a filha mais velha, de 11 anos, com a qual havia algum tempo mantinha uma relação incestuosa. Ele também está preso.
A violência e o abuso sexual nos dois casos estão longe de serem situações isoladas ou raras. A cada dia, em média, quatro crianças ou adolescentes são encaminhadas de diferentes regiões do Estado para acolhimento no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV) por suspeita de terem sofrido abuso ou violência sexual. Na Capital, a média é de dois casos diários.
Os números tornam-se mais preocupantes se levarmos em conta que os dados não incluem as regiões da Fronteira Oeste e Central e do município de Caxias do Sul, que não encaminham as vítimas para o HMIPV. E o pior de tudo é que boa parte dos casos não chega a ser denunciada, muitas vezes devido a ameaças feitas pelos abusadores.
Os números tornam-se mais preocupantes se levarmos em conta que os dados não incluem as regiões da Fronteira Oeste e Central e do município de Caxias do Sul, que não encaminham as vítimas para o HMIPV. E o pior de tudo é que boa parte dos casos não chega a ser denunciada, muitas vezes devido a ameaças feitas pelos abusadores.
Pai fugiu com a própria filha
A fuga do pai com a menina ocorreu em abril de 2014. Ela estava no Conselho Tutelar da Zona Oeste de Gravataí, pois vizinhos da família haviam denunciado as suspeitas de que ela era abusada pelo pai. Seus cinco irmãos, com idades de dois, quatro, seis e 10 anos, já haviam sido encaminhados à guarda dos avós maternos, no interior de Santa Catarina, devido a denúncias de que viviam em situação de vulnerabilidade.
A mãe, envolvida em um novo relacionamento, os havia deixado sob a guarda do pai.
De acordo com as denúncias, o pai costumava deixar os filhos menores fora de casa, em situação de risco, e permanecia por longos períodos trancado com a mais velha, então com 11 anos. Inclusive, os dois dormiam na mesma cama.
No momento em que uma conselheira afastou-se para tirar a cópia de um documento, a menina saiu correndo do prédio. O pai, segundo testemunhas, a aguardava do lado de fora. Antes, ele havia solicitado ao patrão um adiantamento de salário. Mas não voltou ao emprego, e a filha abandonou a escola.
A Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) de Gravataí deflagrou uma operação para localizar pai e filha.
Após a fuga, as únicas pistas que surgiam eram telefonemas que a filha, esporadicamente, dava à mãe para afirmar que "estava bem". Os policiais buscavam o rastreamento do telefone, mas, a cada ligação, o pai costumava trocar o número, alternando inclusive as operadoras.
Depois de 17 meses, a Deam conseguiu localizá-los. O foragido estava trabalhando como caseiro em uma propriedade rural no interior de Gravataí. À polícia, seu patrão alegou que não teve qualquer desconfiança da situação. Durante o período em que estava sendo procurado, o pai não permitiu que a filha saísse uma única vez da propriedade.
O pai teve prisão preventiva decretada por estupro e cárcere privado da filha. De acordo com a delegada Marina Dillenburg, o homem alegou que sua relação com a menina era de pai e filha. Manteve-se frio até mesmo na hora de ser conduzido ao Presídio Central.
Surianny foi estuprada
Corpo de Surianny foi escondido no forro de um sofá - Foto: Arquivo Pessoal
Corpo de Surianny foi escondido no forro de um sofá - Foto: Arquivo Pessoal
A menina Surianny dos Santos Silveira, cinco anos, inicialmente foi dada como desaparecida. Seus familiares passaram a madrugada da quarta passada procurando por ela. Ela e os irmãos teriam ficado sob os cuidados do padrasto e de seu irmão de criação. A mãe das crianças, que trabalha vendendo roupas, estava em São Paulo.
Quando todos já haviam perdido a esperança de encontrá-la dentro de casa, um barulho vindo do sofá, em um dos cômodos da casa na Quinta do Portal, Bairro Lomba do Pinheiro, na Zona Leste da Capital, chamou a atenção dos tios. A menina, ainda com vida, estava no forro do móvel, o mesmo no qual dormia o irmão de criação do padrasto. Surianny foi socorrida, mas morreu pouco depois. A perícia constatou que ela fora estuprada.
Inicialmente, a polícia prendeu o irmão de criação do padrasto, Jéferson Machado Alves, 23 anos. Ele confessou o crime e alegou ter agido sozinho. Nesta segunda-feira, porém, foi preso preventivamente o próprio padrasto, Charles Teixeira de Castro, 23 anos. Na quinta-feira passada, em depoimento, Charles negou participação no crime. Ouvido novamente, voltou a negar qualquer envolvimento.
"Monstros só assustam. Ele machuca"
Os conselheiros tutelares da Zona Oeste de Gravataí, Marcos Vinicius Pinto, Joelson Cardoso, Adriana Neves e Paulo Aguiar, mesmo acostumados a uma rotina de denúncias de violência ou abuso sexual contra crianças e adolescentes, não deixam de se surpreender a cada nova ocorrência.
O município é o segundo em número de encaminhamentos ao Centro de Referência no Atendimento Infanto-Juvenil de Violência Sexual (Crai), no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV), ficando atrás apenas da Capital. E foi por lá que passou o caso do pai que manteve a filha em cárcere privado por 17 meses. Confira outros casos marcantes:
A demora de um pai em sair do banheiro com a filha de cinco anos na escolinha da criança provocou suspeitas. Em conversas com a professora, a direção do estabelecimento descobriu que a menina, em seus trabalhinhos, costumava desenhar-se, junto com o pai próximo a um vaso sanitário e uma pia. Em conversa com a criança, psicólogos descobriram que ela era abusada não somente pelo pai, mas pela mãe também. Quando a menina foi entregue à guarda de familiares, uma tia revelou que, em sua infância, era abusada pelo irmão mais velho (pai da criança).
Em uma família de classe média, uma adolescente de 14 anos, incentivada pelo namorado, denunciou que era abusada pelo pai. Ao saber disso, o abusador tentou o suicídio, colocando-se à frente dos carros na ERS-118. Porém, a polícia o impediu e o prendeu. Passado um mês, saiu do presídio e ameaçou matar sua família. Foi preso novamente.
Em outro caso, um avô, denunciado pela neta, consumou o suicídio. A menina, mesmo tendo sido abusada, teve de passar por tratamento psicológico por sentir-se culpada pela morte do avô.
Ao ouvir os relatos de uma adolescente de 14 anos que desde os 11 era violentada pelo pai, uma conselheira tutelar comentou:
— Desculpa-me, mas o teu pai é um monstro.
A menina, traumatizada com a situação, respondeu:
— Ele não é um monstro porque monstros só assustam. Ele machuca.
Rotina de violência e ameaças
Como ocorre na maioria dos casos envolvendo abusos ou violência sexual de crianças e adolescentes dos zero aos 18 anos incompletos, a menina de Gravataí, agora com 13 anos, foi encaminhada ao Centro de Referência no Atendimento Infanto-Juvenil de Violência Sexual (Crai), no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV), na Capital. O serviço envolve secretarias estaduais e municipais e faz o acolhimento de possíveis vítimas de abuso ou violência sexual, encaminhadas pelos Conselhos Tutelares.
Psicólogas e assistentes sociais avaliam as condições e a dinâmica da família envolvida e os agravos sociais da situação de violência.
A psicóloga Maria Eliete de Almeida foi responsável pelo acolhimento da menina.
— Ela parecia bastante preocupada com o pai e fazia planos para reencontrá-lo quando ele saísse da prisão — revelou a psicóloga.
O comportamento da menina, de acordo com Maria Eliete, não é incomum. O abusador, muitas vezes, se utiliza da proximidade com a criança e da relação de confiança e lealdade para garantir o segredo. Ou aproveita-se também da condição de dependência do abusado em relação a ele.
— A criança tem vínculo de afeto e deveria ser protegida por essas pessoas — destaca Maria Eliete.
— A criança tem vínculo de afeto e deveria ser protegida por essas pessoas — destaca Maria Eliete.
De acordo com a psicóloga, outro expediente muito utilizado pelo agressor para manter o segredo é a ameaça.
— Dizem coisas do tipo: "se você contar vou matar todo mundo, vou sumir contigo e com os teus irmãos, vou colocar fogo na casa, eu serei preso e vocês não vão ter o que comer". Tudo para que as crianças não contem a ninguém — relata.
— Dizem coisas do tipo: "se você contar vou matar todo mundo, vou sumir contigo e com os teus irmãos, vou colocar fogo na casa, eu serei preso e vocês não vão ter o que comer". Tudo para que as crianças não contem a ninguém — relata.
Por conta disso, segundo Maria Eliete, as crianças muitas vezes só denunciam os abusos quando se sentem seguras, como quando a mãe e o agressor (pai ou padrasto) se separam, ou quando ocorre acolhimento no Crai ou nos conselhos tutelares.
Estatística preocupante
O abuso e a violência sexual, de acordo com psicólogos, provoca consequências físicas (dores crônicas), emocionais (baixa autoestima), sexuais (dificuldade de estabelecer relações) e sociais (isolamento).
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