Ex-preso de Guantánamo, afegão lidera guerra contra o Estado Islâmico
- Andrew Quilty/The New York Times
Hajji Ghalib fez exatamente o que os militares dos EUA temiam que ele fizesse depois de sua libertação da prisão de Guantánamo: ele voltou ao campo de batalha no Afeganistão.
Mas em vez de se preocupar com Ghalib, os norte-americanos poderiam ter pensado em incentivá-lo. Magro e queimado de sol, ele agora está liderando a luta contra o Taleban e o Estado Islâmico numa faixa do leste do Afeganistão.
Sua eficácia fez com que fosse nomeado como representante do governo afegão em algumas das regiões mais devastadas pela guerra do país. Autoridades afegãs e norte-americanas o descrevem como um combatente ferrenho e eficiente contra a insurgência, e os militares norte-americanos às vezes apoiam seus homens com ataques aéreos --embora Ghalib reclame que não há tantos aviões de bombardeio e drones quanto gostaria.
Relatos sobre ex-prisioneiros de Guantánamo que foram lutar ao lado do Taleban ou do Estado Islâmico se tornaram comuns. Assim como aqueles sobre presos inocentes que foram capturados pelos EUA e jogados na prisão sem recurso ou apelo. Mas isto é novidade: a história de um homem rotulado injustamente como combatente inimigo e preso em Guantánamo por quatro anos, que depois se torna um aliado firme dos EUA no campo de batalha.
Aos 54 anos, Ghalib tem o rosto enrugado, olhos exaustos e ao mesmo tempo atentos, como se tudo o que esperassem ver é a próxima desgraça que se abaterá sobre sua vida. Já foram muitas, entre elas a morte de ambas suas esposas, suas filhas, uma irmã e um neto nas mãos dos Taleban.
"Para ser honesto, não tenho boas memórias de vida", disse Ghalib.
Em entrevista recente em Cabul, ele catalogou os inimigos que combateu numa vida inteira de luta --primeiro os soviéticos, durante a jihad da década de 1980; depois, o Taleban nas três décadas seguintes; e agora o Estado Islâmico.
Demorou mais para enumerar a longa lista de parentes que ele perdeu ao longo dessas décadas de calamidade, desde um irmão que morreu na guerra contra os soviéticos na década de 1980 até seu sogro de 70 anos, que foi decapitado este mês. O Taleban matou mais de 19 parentes ao todo.
"Tudo tem sido guerra e morte", lamentou.
Agora, sua luta mais recente o colocou contra um homem que ele considerava um amigo próximo: um poeta chamado Abdul Rahim Muslim Dost, que vivia a seu lado em Guantánamo.
Embora Ghalib tenha escolhido rejeitar o ressentimento e lutar em prol do governo apoiado pelos EUA, seu antigo amigo Dost agora lidera os combatentes do Estado Islâmico que as forças de Ghalib estão tentando expulsar do leste do Afeganistão.
Mas há alguns anos, presos no mesmo prédio em Guantánamo, eles passavam os dias debatendo política e a religião.
Dost, um homem sisudo mas perspicaz, que era conhecido pela poesia que entalhava nas laterais das canecas de café por falta de outro material para escrever, era inflexível ao dizer que só havia um caminho depois que fossem soltos: ir ao Paquistão e entrar para a jihad. Ele falava em unir todo o mundo muçulmano.
Ghalib tinha outros planos. "Eu argumentava que nós éramos afegãos e devíamos apoiar o Afeganistão", disse ele, o que significava defender o governo atual, apoiado pelos Estados Unidos, que substituiu o Taleban. Era a opinião da minoria, mas ele não tinha medo de compartilhá-la com nenhum de seus compatriotas presos. "Éramos amigos uns dos outros, apesar das opiniões diferentes", disse ele.
Como Ghalib foi parar no cativeiro dos EUA é uma outra história desconcertante. Depois de ganhar reputação como um comandante eficaz contra os soviéticos e o Taleban, tornou-se chefe de polícia do novo governo afegão após derrubada do Taleban em 2001. Mas em 2003, ele foi preso depois que soldados norte-americanos encontraram dispositivos explosivos ao lado do complexo do governo onde ele trabalhava. Isso aparentemente bastava. Havia também várias cartas que o ligavam a figuras do Taleban, embora autoridades dos EUA tenham admitido que elas podem ter sido forjadas.
Um dos militares que avaliou as provas contra ele explicou que não "acreditava muito na credibilidade de nenhuma das cartas", de acordo com uma transcrição do tribunal.
Isso Ghalib confuso. "Então por que você está me prendendo?"
Em Guantánamo, Ghalib explicou muitas vezes a seus captores que tinha lutado contra o Taleban ao longo dos anos e tinha até mesmo ajudado as forças norte-americanas contra a Al Qaeda em Tora Bora. Ele citou os nomes dos principais comandantes anti-Taleban que confirmariam sua história.
Investigadores norte-americanos finalmente concluíram que o "detento não foi considerado membro da Al Qaeda ou do Taleban", de acordo com um documento militar que descrevia as provas. Apesar disso, os militares consideraram Ghalib de "médio risco", observando que ele podia se tornar um inimigo forte por causa de seus anos de experiência como comandante em combates, ainda que do lado do governo, antes da detenção.
Finalmente, em 2007, Ghalib foi solto.
Ele lembra que saiu de Guantánamo irritado não só com os militares dos EUA por causa da "tortura psicológica" a que foi submetido, mas também com o governo afegão por não pressionar por sua libertação. No entanto, ele estava determinado a não deixar que as dificuldades daqueles quatro anos alterassem o rumo de sua vida.
Ghalib decidiu que se guiaria pela "dor que o meu povo e meu país está passando, que é a coisa mais importante".
Mas sua própria tristeza só aumentaria nos anos seguintes.
"Meu sonho era voltar para casa e viver em paz", disse Ghalib. "Mas ninguém me deixou fazer isso."
Tudo começou com uma estrada, ou pelo menos com a ideia de uma estrada, que sua tribo Shinwari queria construir no distrito de Ghalib, na província de Nangarhar, onde ele nasceu. Como um ancião tribal, Ghalib assumiu um papel de liderança no projeto que tinha financiamento internacional.
Quase que imediatamente, o Taleban começou a ameaçá-lo por trabalhar com os estrangeiros, e logo os insurgentes começaram a assassinar seus parentes.
Neste verão, membros da tribo Shinwari pediram que ele fosse transferido dois distritos ao sul, para resgatar uma região problemática chamada Achin, onde um cinturão de aldeias caiu vítima de uma nova ameaça: combatentes do Estado Islâmico sob o comando de Dost, seu velho amigo de Guantánamo. Os militantes tinham empurrado dez anciãos da tribo em uma trincheira cheia de explosivos e gravado um vídeo da explosão que os matou.
Quando Ghalib chegou, no papel de novo governador do distrito, ele colocou sobre sua mesa uma fotografia do neto de dois anos, morto no bombardeio a um cemitério. "Cada vez que olho para ele, isso faz meu coração explodir e fico motivado", disse ele. "É por isso que eu mesmo comando todas as operações."
Numa batalha neste verão, Ghalib descreveu como ele e seu filho lideraram uma força de policiais e soldados contra os combatentes do Estado Islâmico que ameaçavam invadir o pequeno centro do distrito de Achin. Depois de serem atingidos por explosões de bombas na estrada, a maior parte dos combatentes recuou, deixando Ghalib e seu filho sozinhos para enfrentar cerca de 15 combatentes do Estado Islâmico.
"Conseguimos atirar em muitos", disse ele.
Em momentos como esse, disse Ghalib, ele não ficaria surpreso de encontrar Dost entre os jihadistas, atirando contra ele --dizem que Dost costuma estar na linha de frente.
Mas Ghalib falou que teria pouco a dizer a Dost neste ponto: "ele mata civis, pessoas inocentes e crianças".
"Não vamos poupá-lo quando eu encontrá-lo no campo de batalha", disse Ghalib com naturalidade. E se ele tiver chance, "também não vai me deixar viver", disse.
Tradutor: Eloise De Vylder
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