A tripla condenação dos gays sírios
Homossexuais fogem do país árabe por causa das ameaças dos jihadistas, que se somam à repressão pelo regime e à rejeição por suas famílias e tribos
NATALIA SANCHA Beirute 3 MAR 2015 - 16:17 BRT
Em novembro passado, dois jovens sírios foram apedrejados até a morte. A execução ocorreu em Deir Zor, um feudo do Estado Islâmico (EI) no nordeste da Síria. Seu crime: serem homossexuais. Tratava-se da primeira execução pública de gays pelas mãos do grupo jihadista. Um homem leu a brutal condenação, emitida com base na rigorosa lei religiosa que serve de Constituição no califado. A 140 quilômetros dali fica Raqqa, a capital do EI, de onde o médico Ibrahim, de 33 anos, fugiu há um ano. É que o fato de ser homossexual resultava em uma perseguição contínua na sua cidade natal. Encarcerado sob a lei síria, condenado a morte pela dos jihadistas e banido por sua própria tribo, Ibrahim conseguiu sobreviver a uma tripla condenação.
Após quatro anos de guerra e mais de 200.000 mortos, as execuções de homossexuais se intensificaram no reino do EI, que ocupa partes da Síria e do Iraque. As imagens de dois jovens sendo empurrados do terraço de um edifício na localidade iraquiana de Nínive deram a volta ao mundo. Com os olhos vendados e as mãos atadas às costas, eles eram atirados ao vazio, enquanto o verdugo proclamava: “Muçulmanos, sejam testemunhas da aplicação da lei!”.
Beirute, refúgio para exilados políticos
Vários jovens homossexuais sírios trocam impressões na sede da ONG Proud Lebanon, na periferia de Beirute. Trazem consigo o duplo trauma acumulado por fugir da guerra e lutar para continuar vivos apesar da sua sexualidade. Perseguidos tanto nas áreas leais ao regime como nos bastiões rebeldes, resta aos homossexuais sírios apenas a opção do exílio para sobreviver. Em 2013, o libanês Bertho Makso, cofundador da ONG, começou a acolher refugiados sírios homossexuais.
“Oferecemos atendimento médico e psicológico, cursos de formação e um prato quente. Para muitos, será a única coisa que vão ingerir no dia”, conta Cosette Maalouf, funcionária da ONG. O centro acolhe 320 homossexuais, dos quais mais de 60% são sírios. “A maioria vê Beirute como um lugar de passagem para ir à Europa”, explica Makso, segundo quem 70 deles obtiveram asilo político no ano passado.
Diferentemente dos demais refugiados sírios, esses estão sozinhos. Romperam com sua família e fugiram do regime e dos rebeldes. “Trata-se de uma comunidade muito vulnerável dentro dos refugiados sírios, mas não há estudos ou organismos que realmente monitorem esses casos. Não são perseguidos apenas pelo Estado Islâmico, mas sim por [outros] rebeldes, pelas leis sírias e pela própria moral social. Os ataques do EI são mais visíveis por causa da sua polícia moral”, observa Nadim Khoury, diretor da ONG Human Rights Watch em Beirute.
Entre os 320 beneficiários, há apenas quatro mulheres. “Na nossa sociedade não se considera que a mulher tenha uma sexualidade, e durante a guerra ficamos trancadas em casa. Por isso é mais fácil para as lésbicas passar despercebidas. Não sei de nenhuma execução de uma mulher homossexual”, conta Bahiya, de 28 anos, falando por telefone de Aleppo.
Em 2010, antes de as primeiras revoltas estourarem na Síria, Ibrahim foi detido com base no artigo 520 do Código Penal sírio, em vigor desde a época que o país era um protetorado francês. Pela lei, quem realizar “atos sexuais não naturais” pode ser condenados a até três anos de prisão. Sob tortura, um de seus amigos detidos o delatou. A família de Ibrahim, que pertence a uma tribo conhecida, decidiu ocultar o escândalo recorrendo a contatos no regime e a um pagamento equivalente a cerca de 58.000 reais. Ibrahim saiu da prisão, mas sua liberdade durou pouco: “Quando pensei que tudo havia terminado, o pior começou. A revolução teve início, o caos tomou conta de Raqqa,o Exército Sírio Livre se transformou em Al Nusra [filial da Al Qaeda em Síria] e em EI”.
Três de seus amigos homossexuais foram executados pelos jihadistas. Um deles morreu do coração enquanto era torturado. Os outros dois, com um tiro na nuca. “Em Raqqa, a comunidade gay era ativa. Mas só os homossexuais passivos são considerados gays. Muitos dos que tinham mulheres e se deitavam com homens foram parar nas fileiras da Al Nusra e do EI. Para expiar suas culpas, entregaram todos os gays que conheciam da sua fase pré-revolucionária. Meus três amigos pagaram com sua vida, e dos telefones deles tiraram os números de dezenas de outros como eu”, relata, com um sorriso amargo.
Pouco depois, Ibrahim foi sequestrado e torturado pelos jihadistas. Sua tribo interveio pela última vez, pagando o equivalente a cerca de 32.000 reais por sua vida. “Eu tinha parentes próximos do EI e da Al Nusra que pediam minha cabeça. Meu tio conseguiu negociar minha liberdade, mas me deram duas horas para deixar Raqqa. Eu havia desonrado a minha família e a minha tribo.”
A família de Ibrahim pagou o equivalente a 58.000 reais para tirá-lo da prisão e outros 32.000 para que os jihadistas os soltassem
Sua primeira parada foi Damasco, região leal ao regime e onde ainda existem vários hamam (saunas) transformados em lugares de encontro para homossexuais. “É ilegal, mas, se os donos subornarem a polícia, ela faz vista gorda”, provoca Jorge, 35 anos, falando por telefone de Madri. Em março de 2012, Jorge – que é filho de um sírio e uma espanhola – hospedou-se com seu namorado em um hotel. “A polícia nos flagrou na cama. Arrastaram-nos nus pelos corredores e pela rua. Chamavam-nos de doentes mentais, enquanto nos chutavam”, conta esse ex-professor de Filologia Hispânica. Ele conseguiu pagar a fiança para sair do calabouço, em torno de 10.000 reais. “Logo depois me convocaram para me alistar no Exército. Por ser filho único estou isento do serviço militar, por isso eu soube que era uma armadilha para me prender por ser gay. Fiz as malas e fugi para a Espanha”, conta Jorge, que acabou sendo salvo por seu passaporte espanhol.
Ibrahim também escapou. Agora, como refugiado sírio no Líbano, ainda guarda esperanças de uma nova vida: “Passamos anos sob a repressão do regime, e a comunidade internacional não se importou. Há sete meses espero asilo político na Europa. Tento manter a prudência, porque sei que mereço um recomeço. Mas até agora não me deram a oportunidade”.
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